O governo prepara sua primeira leva de concessões de hidrovias. O projeto mais avançado é o do rio Madeira, que poderá ter edital lançado neste ano. Também estão em curso estudos do rio Paraguai e da Lagoa Mirim (RS), além de três iniciativas preliminares no Tapajós, no Tocantins e na foz do Amazonas. A estimativa inicial é de ao menos R$ 4 bilhões de investimentos.
Por um lado, analistas do setor de infraestrutura apontam incertezas sobre o novo formato, como o arcabouço regulatório pouco desenvolvido e os riscos climáticos. Por outro, tanto governo quanto setor privado avaliam que há grupos interessados nos leilões e que as concessões são necessárias para viabilizar o desenvolvimento das hidrovias no país.
“O Brasil demorou a acordar para a importância da infraestrutura aquaviária. Hoje, não temos hidrovias, temos vias navegáveis. A via navegável é como a estrada de chão: se chover, você não passa. No rio navegável, o navio passa quando está cheio, mas na seca há restrições que afetam a eficiência operacional. É preciso criar hidrovias de fato”, diz Eduardo Nery, diretor-geral da Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários).
O objetivo das concessões, diz ele, é garantir às hidrovias dragagem constante ao longo do ano e instrumentos de sinalização e medição para dar segurança ao fluxo logístico – algo que praticamente não existe, o que prejudica o uso do modal. O crescente risco climático é um fator adicional. “Os eventos estão cada vez mais críticos e recorrentes, precisamos estar preparados. A concessão vai mitigar.”
A iniciativa mais avançada é a concessão do rio Madeira, que é estruturada pela Infra S.A. Será uma concessão de 12 anos, com investimento de R$ 109 milhões e despesas operacionais de R$ 480 milhões ao longo do contrato.
“Os recursos vão ser destinados a sinalização, manutenção do calado, gestão do tráfego, com todo o levantamento de dados, batimetria. Em alguns pontos, haverá derrocamento com retirada de rochas. E haverá obrigação do concessionário de manter terminais para passageiros”, explica Cristiano Della Giustina, diretor da estatal que faz os estudos.
O projeto tem a vantagem de ter demanda de carga consolidada e verba garantida para subsidiar o contrato, que será uma Parceria Público-Privada. O aporte público virá de recursos previstos na lei da privatização da Eletrobras – o texto garantiu de forma expressa dinheiro para a melhoria da navegação do rio Madeira. “Na próxima reunião do CGPAL [Comitê Gestor do Pró-Amazônia Legal, responsável por gerir os recursos previstos na lei], já devemos carimbar para a concessão do Madeira”, diz Dino Antunes, secretário nacional de hidrovias.
Porém, há também resistências, dado que as empresas que usam o rio para transportar carga passarão a pagar tarifa. “É natural, qualquer concessão de um setor novo gera receio inicial dos usuários”, afirma Antunes. Ele diz que, antes da consulta pública, o governo deverá fazer conversas com a sociedade para mostrar os benefícios da hidrovia e explicar à população que passageiros e pequenos navios não pagarão.
Segundo o secretário, a ideia é publicar o edital neste ano, mas o prazo é flexível. “O importante é que o processo seja robusto, que tenha alinhamento com a sociedade e os atores políticos.”
A Infra S.A. também trabalha nas concessões do rio Paraguai e da Lagoa Mirim. A primeira deverá ter estudos finalizados em outubro, segundo Giustina. A segunda passa por atualização devido às chuvas no Estado, que afetaram os rios.
Em julho, o governo contratou o BNDES para iniciar a modelagem de outros dois leilões, da hidrovia do rio Tocantins, de Belém até Peixes (TO), e a do Tapajós, no Pará. Outra concessão planejada é da hidrovia Barra Norte, na foz do Amazonas.
No mercado, a previsão é que operadores logísticos, como a Hidrovias do Brasil, empresas de dragagem e donos de carga, principalmente de grãos e de minério, sejam os maiores interessados nos leilões. A empresa de dragagem DTA Engenharia diz que analisa os projetos do Madeira, da Lagoa Mirim e do Paraguai, segundo o presidente, João Acácio Oliveira Neto. “Temos muito interesse, vamos participar.” A Hidrovias do Brasil não se manifestou.
Segundo Nery, investidores de diferentes perfis já demonstraram interesse pelo projeto do Madeira. “Fundos de investimento e empresas de construção buscaram conhecer. Os produtores rurais podem se unir a grupos para explorar. Certamente vai atrair.”
Analistas do setor também avaliam que há interessados, mas apontam preocupações. A primeira é o arcabouço regulatório. “O setor de hidrovias precisa passar pelo que setores como o aéreo já passaram. A regulação técnica é feita pela Marinha, que não tem olhar econômico. Precisa melhorar a governança”, afirma Natália Marcassa, presidente da Moveinfra, que reúne empresas de infraestrutura.
Ela também cobra mais clareza sobre a governança da outorga de uso da água, regulada pela ANA (Agência Nacional de Águas). “Em uma seca, quem será privilegiado? Isso afeta a receita. Hoje, a geração de energia é privilegiada. Se tiver concessão, precisa organizar”, diz.
“É algo desafiador para se construir, como qualquer estrutura pioneira. É necessário desenhar um contorno regulatório e contratual que pare em pé. Como abarcar os riscos climáticos também não é algo óbvio”, afirma Marcos Pinto, sócio-diretor da A&M (Alvarez & Marsal) Infra.
Nery diz que a modelagem dos contratos deverá contemplar essas questões e que a Antaq tem conversado com Marinha e ANA. “A dificuldade da Marinha é a falta de levantamento hidrográfico constante. Com o novo nível de informação que a concessão vai trazer, isso vai ser mitigado. Com ANA, temos avaliado a possibilidade de uma certidão de outorga de uso para garantir uma vazão mínima para o concessionário.”
Para Luiz Soggia, diretor da A&M Infra, a equação econômico-financeira é outra questão. “No mundo todo, o setor hidroviário é subsidiado, porque precisa de investimento alto e o que se consegue cobrar é pouco, para manter a competitividade. Sem subsídio, os projetos devem ser mais voltados à manutenção do que a melhorias.”
Casemiro Tércio Carvalho, sócio da 4 Infra, afirma que a concessão é essencial para garantir o avanço do modal. “Não faz sentido gastar dinheiro público com dragagem, balizamento, manutenção de eclusa e não cobrar. Entrega-se um nível de serviço para quem quer navegar, e nada mais natural do que cobrar. É possivel fazer tarifa social para população e tem saídas para subsidiar projetos. A conta fecha”, diz ele.
Fonte: Valor Econômico – Por Taís Hirata — São Paulo, 21/08/2024