Finalizar obra deveria ser prioridade para o país, diz pesquisadora

A discussão sobre saneamento básico no Brasil precisa dar prioridade à eficiência no gasto público e à finalização de projetos em andamento ou incabados, de acordo com a economista Antonella Bancalari, pesquisadora do Institute for Fiscal Studies (IFS), localizado em Londres, e doutora em políticas sociais pela London School of Economics and Political Science (LSE). Há evidências de que obras inacabadas tendem a aumentar a taxa de doenças infecciosas e a mortalidade infantil, por exemplo, afirma.

Em entrevista ao Valor, a economista diz que a dicotomia entre investimento privado ou público no saneamento não tem sentido. Há, segundo ela, casos tanto de concessões bem desenhadas, com o Estado fiscalizando metas de qualidade do serviço e impacto positivo na saúde pública, quanto maus resultados. Os termos do contrato, diz, são a chave para os bons resultados. “No Brasil, as discussões estão em torno dos montantes de investimento; se fala em bilhões, mas não sobre como usar o dinheiro de forma eficaz”, aponta.

Valor: Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU estabelecem metas para a universalização do acesso à água potável e ao saneamento básico até 2030. A seis anos do prazo, são objetivos realistas? Quais são os desafios?

Antonella Bancalari: No Brasil, as metas são 90% da população conectada ao sistema de esgoto tratado e 99% com acesso à água potável segura até 2030. Entre 2000 e 2021, o acesso à água segura aumentou de 78% para 88%, é um avanço importante. Mas o acesso ao saneamento foi de 36% para 50%. Esse é o maior desafio: metade da população não tem saneamento básico. Para tratar dos desafios é preciso abordar o ciclo do investimento público. No Brasil, as discussões estão em torno dos montantes de investimento, se fala em bilhões, mas não sobre como usar o dinheiro de forma eficaz.

Em países latino-americanos, na África e na Ásia, estamos acostumados a ver obras inacabadas, mas isso não é trivial por dois motivos. Primeiro, há o custo de oportunidade dos recursos, que poderiam ser usados em projetos que fossem concluídos. Segundo, obras inacabadas colocam em risco a população. Por exemplo, estudei o caso da implementação do Plano Nacional de Saneamento do Peru. Entre 2005 e 2015, em média, a mortalidade infantil aumentou em 5%. Dez anos após o início dos projetos, onde havia obras incompletas, houve um incremento de até 20% na mortalidade infantil e de crianças até cinco anos.

“Se fala em bilhões, mas não sobre como usar o dinheiro de forma eficaz”

Valor: Por quê?

Bancalari: Durante a implementação, há valas abertas que se enchem de água da chuva, tornando-se focos de infecção, e poços inacabados podem virar lixões. Isso faz com que aumente a mortalidade por doenças infecciosas, além de causar acidentes diretos relacionados à construção.

Valor: Como evitar esses problemas?

Bancalari: A parte de implementação é um grande desafio. Nos estudos de pré-investimento raramente se mencionam esses riscos. Avaliações medem o impacto no meio ambiente, mas é raro considerar o quanto a população será afetada durante as obras. É crucial considerar o custo social, que é muito elevado. Estar ciente do aumento da mortalidade leva a investir para mitigar este problema.

Valor: Quais são as principais razões para os problemas de implementação?

Bancalari: Uma delas é a falta de dinheiro, não necessariamente uma falta global de recursos, mas de verbas para um projeto específico, porque o dinheiro é destinado a outro. Quando a implementação é responsabilidade dos municípios, há a atomização dos investimentos em muitos pequenos projetos, levando a um vaivém de recursos entre um e outro. Há ainda a instabilidade nas dinâmicas políticas, nas preferências de alocação de recursos. Às vezes, projetos são deixados abertos de propósito pelos prefeitos para que sejam reeleitos e os concluam. Outro fator é a gestão das empresas privadas e concessões. Bancos como o Banco Mundial e o [Banco Interamericano de Desenvolvimento] BID deveriam exigir a conclusão de projetos iniciados antes de financiar novos.

Valor: Ainda assim, houve avanços.

Bancalari: Sim, a América Latina está progredindo. Por exemplo, em vez de atomizar os projetos de maneira descentralizada, passou a privatizá-los como um cluster de projetos, que abrange vários municípios e considera as economias de escala.

“O Estado deve fiscalizar para garantir que padrões sejam cumpridos”

Valor: No Brasil, o serviço de saneamento está a cargo dos municípios, mas a criação de clusters com a participação da iniciativa provada foi facilitada pelo novo marco regulatório. Entusiastas das concessões dizem que os investimentos privados podem dinamizar o setor. Os críticos temem que isso possa aumentar os custos aos mais pobres. O que indica a experiência internacional?

Bancalari: O modelo do Brasil é semelhante ao de outros países da América Latina. Sempre há trade-offs: investimentos privados podem melhorar o serviço, mas tarifas altas podem impactar negativamente os mais pobres. Após a conclusão do projeto, é preciso conectar os lares à infraestrutura pública, e com tarifas caras, os mais pobres não têm o que se chama de disposição para pagar. Esta disposição pode ser influenciada pela capacidade de pagar, ou preferência. Com água e esgoto, o custo é imediato, mas o benefício só é percebido mais tarde, fazendo com que as pessoas não priorizem essa questão. Há ainda os que não estão dispostos a se conectar ao sistema de esgoto e pagar as tarifas porque seus vizinhos não o fazem.

Valor: Como resolver?

Bancalari: O governo e o setor privado precisam de uma estratégia conjunta. Na Bolívia, onde participo de projetos com o BID, foram necessários subsídios para incentivar a conexão à rede de esgoto. Além de investimentos, é preciso ter campanhas de conscientização permanentes. Estudos mostram a importância do acompanhamento para que as pessoas evitem maus hábitos de higiene e paguem as tarifas.

Valor: O que pode ser feito nas áreas de ocupação irregular que têm acesso à água de modo informal?

Bancalari: Quem aluga terras irregularmente não quer se conectar ao sistema de esgoto se isso aumentar o aluguel, e há ainda o espaço físico limitado. Uma solução temporária vista na Índia é a construção de banheiros comunitários, que funcionam até que sejam construídos lares adequados com banheiro privado, e ainda proporcionam economia circular, gerando biogás para a comunidade.

Valor: Qual é o papel do Estado?

Bancalari: Deve subsidiar os mais pobres, por exemplo, fornecendo transferências condicionadas para conexão ao sistema de esgoto e à água potável. A segmentação é difícil, mas em locais como favelas, ela é possível de forma comunitária. Mesmo com investimento privado, o Estado deve fiscalizar para garantir que padrões sejam cumpridos, como o tratamento dos efluentes. Se o efluente não for tratado, os resíduos são despejados no mar e nos rios, contaminando a água. Um estudo na Índia mostra que, embora banheiros tenham sido construídos nas favelas, como os efluentes não são tratados, não há melhorias na saúde pública.

Valor: Faz sentido a dicotomia no debate sobre investimento público versus privado?

Bancalari: Não, temos experiências muito distintas. Na Argentina, estudos mostram que, com a privatização do acesso à água e saneamento, a mortalidade infantil caiu, e melhorou o acesso a [coleta e tratamento de] esgoto. Já na Colômbia, a privatização foi menos eficaz, com queda mais lenta na mortalidade. Isso depende do envolvimento do Estado e se cumpre seu papel regulador, exigindo serviços de qualidade. Os termos dos contratos são a chave [para bons resultados].

Valor: A relação entre rede de saneamento e saúde pública está comprovada, mas qual é a dimensão?

Bancalari: Estudos mostram a relação entre saneamento e saúde pública, produtividade e desempenho escolar. O Banco Mundial estima que o custo do saneamento inadequado pode chegar a 6,4% do PIB na Índia. É um caso extremo, mas sabemos que a água nas cidades latino-americanas é contaminada. Isso gera doenças que afetam principalmente crianças, prejudicam o desempenho escolar, e afetam os pais, que precisam cuidar delas. Isso afeta a produtividade. É uma sorte nascer onde banheiro e água potável são garantidos, algo que o Banco Mundial estima que 3,5 bilhões de pessoas [no mundo] não têm.

Valor: Com a realidade das mudanças climáticas, qual o possível impacto delas sobre os recursos hídricos?

Bancalari: Ainda não foram realizados muitos estudos que relacionem os impactos das mudanças climáticas com o saneamento básico.

Fonte: Valor Econômico – Por Ivan Martínez-Vargas — Para o Valor, de Londres, 30/08/2024

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