Diferentemente de temas como reúso de água, gestão de resíduos, eficiência energética e uso de madeira de reflorestamento, o carbono ainda é pouco abordado pela indústria da construção civil. Responsável por 32% do consumo de energia global e por 34% das emissões mundiais de dióxido de carbono (CO₂), o setor ainda enfrenta obstáculos para avançar na descarbonização. Um dos principais entraves é justamente a medição da pegada de carbono.
Ao lado da indústria automotiva, a construção civil é uma das atividades que mais depende de uma cadeia ampla e diversificada de fornecedores. Sem informações precisas, identificar os gargalos é um desafio. “Com acesso a dados, fica mais fácil pensar em soluções”, comenta Francisco Antunes de Vasconcellos Neto, vice-presidente de Meio Ambiente do Sindicato da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon-SP).
No Brasil, segundo dados de 2023 do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima, as edificações respondem por cerca de 7% das emissões totais do país.
Para trazer o setor para a mesma página e incentivar a adoção da métrica, o SindusCon-SP, por meio de seu Comitê de Meio Ambiente (Comasp), lançou em dezembro de 2020 a calculadora de carbono CECarbon. Desenvolvida com apoio da Agência de Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ) e da Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, a ferramenta mede dois dos principais indicadores de impacto ambiental de uma obra: as emissões de gases de efeito estufa e o consumo de energia (energia embutida). “Grandes empresas associadas nos pediram ajuda para calcular porque começam a ser cobradas de stakeholders”, conta Vasconcellos Neto.
Só em 2024, a CECarbon registrou um aumento de 84% nos acessos e 52% no número de usuários, em relação a 2023, sendo responsável por mais de 100 inventários de emissões no setor da construção.
A fase de obra é considerada o “berço” do ciclo de vida de um edifício. A calculadora contempla desde a extração de materiais até o uso no canteiro de obras (fases de produto e construção). No entanto, não chega a contabilizar emissões relacionadas ao uso, manutenção, reformas, gestão de água e energia ao longo da vida útil, nem o fim de vida do edifício, que envolve demolição, processamento de resíduos, recuperação e reciclagem.
Embora as emissões operacionais de uma obra se concentrem principalmente em resíduos e energia, isso não exime o setor da responsabilidade de engajar a cadeia de suprimentos na busca por insumos menos poluentes. De acordo com o Inventário Setorial – Projeto Aliança GEE, 97% das emissões associadas a uma obra vêm dos materiais utilizados — principalmente aço, cimento, alumínio e vidro — considerados difíceis de descarbonizar (“hard to abate”). Cimento e aço, por exemplo, são responsáveis, juntos, por 18% das emissões globais de GEE. “Eu consigo atuar em 3% do problema. Para o restante, eu preciso dos meus fornecedores”, comenta Vasconcellos Neto.
Para enfrentar esse desafio, o engajamento com fornecedores é essencial. Em uma das frentes, o SindusCon-SP mantém parceria com a ONG Prolata para promover a logística reversa do aço e alumínio descartados nos canteiros de obras, contribuindo para a coleta e destinação adequada de embalagens de aço pós-consumo. A iniciativa aumenta a oferta de materiais reciclados disponíveis no mercado.
Desde seu lançamento, a CECarbon passou por duas atualizações, e uma quarta versão está em desenvolvimento com apoio da KPMG. A nova edição trará avanços como integração com softwares de orçamento e compatibilidade com a metodologia BIM (Building Information Modeling).
Outra novidade no ferramental disponível às construtoras é a CEHídrica – Calculadora de Eficiência Hídrica na Construção Civil de Edificações. Apresentada no final de maio, durante o evento de 25 anos do Comasp, a ferramenta amplia a avaliação do impacto ambiental das obras, com foco no uso da água. A previsão de lançamento é novembro deste ano, com a disponibilização de uma versão preliminar da ferramenta.
“Essa iniciativa busca promover a padronização e definição de métricas contribuindo para a gestão climática no setor”, comenta Lilian Sarrouf, coordenadora técnica do Comasp e superintendente do Comitê Brasileiro da Construção Civil da Associação Brasileira de Normas Técnicas (CB-002/ABNT).
Os resultados da CEHídrica avaliarão as edificações do berço ao uso, ou seja, desde a extração e fabricação dos materiais até a operação dos empreendimentos, considerando diferentes tipos de impactos hídricos, como escassez, poluição e disponibilidade regional. Poderão ser avaliadas soluções que diminuam os impactos negativos e promovam impactos positivos.
Além de orientar decisões de projeto e escolha de materiais com foco na redução do impacto hídrico, a CEHídrica pode ser usada na elaboração de inventários considerando uma vida útil de 50 anos da edificação. A pegada hídrica será calculada com base na disponibilidade de água na região, conforme metodologia da norma NBR ISO 14046. A ferramenta contará com um banco de dados de 54 materiais.
Durante o evento em maio, Virginia Sodré, CEO da Infinitytech e presidente do Conselho de Água do Green Building Brasil, comentou que grandes empresas já estão usufruindo de mecanismos de créditos de água, comercializando cotas para compensar e restaurar recursos hídricos — prática que já chegou ao Brasil. Segundo Virginia, estão previstas parcerias para aprimorar a CEHídrica, incluindo a Sabesp, a Universidade de São Paulo e empresas da cadeia produtiva.
A conformidade dos inventários com a legislação vigente e com as normas de divulgação de sustentabilidade é uma das principais demandas das empresas usuárias da CECarbon. “Dessa forma, as empresas podem utilizar os relatórios gerados pela CECarbon em seus materiais próprios de divulgação dos planos de descarbonização”, aponta Sarrouf.
Para garantir mais qualidade e confiabilidade, a KPMG foi contratada como auditoria externa dos dados da ferramenta e a plataforma está hospedada em nuvem com segurança criptografada. Para facilitar o uso, o Comasp criou um curso on-line gratuito de capacitação.
Entre os próximos passos está a atualização da base de dados de emissões da CECarbon, visando maior precisão e aderência ao contexto brasileiro. A Saint-Gobain, multinacional francesa dona de marcas como Quartzolit, Brasilit, Placo, Isover e Ecophon, é parceira da iniciativa não apenas como patrocinadora da CECarbon, mas também contribuindo diretamente para o aprimoramento da base de cálculo. As Declarações Ambientais de Produto (EPDs) da Saint-Gobain já foram incorporadas à ferramenta.
“Ao padronizar premissas e consolidar informações entre diferentes agentes do setor, a CECarbon abre caminho para a criação de indicadores nacionais de referência”, aponta Dimitri Nogueira, Diretor de P&D e Inovação da Saint-Gobain para a América Latina.
Comparando a realidade brasileira com a europeia, há uma diferença significativa da pegada de carbono de uma obra: enquanto, no Brasil, as emissões de uma obra giram em torno de 220 quilos de dióxido de carbono (CO₂) por metro quadrado de construção, na Europa este número sobe para 250 kgCO₂/m². A diferença se deve, principalmente, à matriz energética mais limpa do Brasil, o que reduz a pegada de carbono da indústria.
“Quanto mais fabricantes divulgarem suas DAPs, mais precisa e estratégica se torna a plataforma, oferecendo mais precisão nos cálculos e reforçando a importância da transparência e da colaboração para acelerar a descarbonização do setor”, comenta Nogueira.
Com isso, o país ganha vantagem no cumprimento das metas globais de emissões. “A discussão global de redução de 30% das emissões até 2030 precisa ser revista aqui, porque hoje já emitimos bem menos”, completa Vasconcellos Neto.
Base para políticas públicas
Lilian Sarrouf, do Comasp e da ABNT, também representa o setor pela Câmara Brasileira da Industria da Construção (CBIC) na elaboração da Taxonomia Sustentável Brasileira. “Será importante para colocar todos na mesma página e prover diretrizes para análises de crédito, regulamentações e decisões de investimento”, diz. Ela conta que os primeiros cadernos técnicos devem ser lançados em agosto, e trarão a classificação de atividades econômicas setoriais, servindo de base para identificar atividades sustentáveis.
O papel das associações setoriais também é o de preparar seus associados para essas transformações. O VP do SindusCon-SP acredita que, em breve, as empresas de construção civil serão cobradas por mais transparência quanto à sua pegada de carbono e suas ações de mitigação. “Inclusive pode ser um requisito para conseguirem financiar as obras”, diz.
Atualmente, o mercado financeiro carece de linhas de crédito específicas para as empresas do setor que adotam práticas ESG. No entanto, Vasconcellos Neto acredita que, em um futuro próximo, instituições financeiras poderão oferecer taxas mais atrativas às empresas com sólida atuação em sustentabilidade — e restringir o acesso daquelas que não se adaptarem. Para os representantes do Comasp, o envolvimento do setor financeiro e do mercado de capitais poderia acelerar a implantação da agenda.
Mesmo as emissões de títulos de dívida sustentável, como Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) ou debêntures verdes, direcionados ao setor, não vingaram, ainda. Em janeiro deste ano, a Tegra Incorporadora levantou R$ 322 milhões com a emissão de um CRI Verde, com a coordenação do banco BV. Foi o primeiro de sua categoria no Brasil. A incorporadora se comprometeu a aplicar os recursos, preferencialmente, no desenvolvimento de empreendimentos com características de “prédios verdes”, que tenham certificações do mercado imobiliário sustentável.
Um divisor de águas será também quando ferramentas como esta influenciarem políticas públicas. Um dos exemplos citados pelos representantes do Comasp é o Selo Casa Azul+ Caixa, destinado a propostas de empreendimentos habitacionais que adotem solução eficientes nas edificações. Ele poderia ser utilizado em construções sustentáveis, conforme já é recomendado pelo Ministério das Cidades (Portaria nº 725/2023). Outros exemplos são o IPTU Verde de Salvador (BA) e o Manual de Estratégias Sustentáveis de São José dos Campos (SP), que buscam integrar os requisitos sustentáveis no planejamento urbano.
“Não queremos que seja uma ferramenta apenas para associados do SindusCon-SP. Mas sim para dar assistência a qualquer construtora e contribuir para o desenvolvimento de políticas públicas”, reforça o executivo do sindicato.
Hoje, a CECarbon começa a ser adotada por gestores públicos. Campinas, no interior paulista, foi a primeira cidade a incorporá-la em seu Plano Local de Ação Climática. Na assinatura da parceria, em maio, a secretária de Urbanismo do município, Carolina Baracat, explicou que a ideia é, a partir do monitoramento das obras, identificar possibilidades de uso de materiais sustentáveis, reduzir a poluição, padronizar métricas e até estruturar regras e incentivos para construtoras que atuam na região. O uso da ferramenta, no entanto, ainda não é obrigatório.
Fonte: Valor Econômico – Por Naiara Bertão, Prática ESG — São Paulo, 01/08/2025