Em meio a um mercado de trabalho mais aquecido do que o previsto, setores como comércio, alguns serviços e construção civil já passam por descasamento entre oferta de trabalhadores e demanda por funcionários. A dificuldade de patrões em encontrar empregados pode prejudicar a produtividade da economia, além de se refletir em preços mais altos aos consumidores finais ou margens de lucro menores para as empresas.
Metade dos setores monitorados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, está com a demanda por trabalhadores aquecida e 20% deles já enfrentam escassez de mão de obra há pelo menos seis meses, segundo um estudo do novo Departamento de Pesquisa Econômica do Banco Daycoval.
“Setores como comércio e serviços de alojamento e alimentação parecem ter absorvido o excesso de mão de obra e já sugerem falta de trabalhadores disponíveis, enquanto serviços especializados como informação, comunicação e finanças, além da indústria, ainda não parecem enfrentar escassez, mas apresentam demanda aquecida”, escrevem, em relatório, o economista-chefe Rafael Cardoso, o economista Julio Cesar Barros e o analista Antonio Castro.
O estudo do Daycoval é inspirado em um trabalho do Fed San Francisco (distrital do Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos), que analisou variações de valores e quantidades para um indicador de inflação – índice de preços de gastos com consumo (PCE, na sigla em inglês) – dos Estados Unidos.
Adaptando a classificação para o emprego, um quadro de escassez de oferta de trabalhadores é caracterizado quando há crescimento da ocupação abaixo da média histórica, mas com rendimentos subindo acima da média, explica Rafael Cardoso. Já o excesso de oferta de trabalhadores ocorre quando ocupação e salários têm desempenho abaixo da média.
“Se o número de ocupados cresce, mas não gera pressão nos salários, podemos concluir que, a despeito do crescimento forte da demanda, a oferta de trabalhadores também é grande. Por outro lado, se o número de ocupados não acompanha o avanço dos rendimentos, pode haver escassez de oferta de trabalhadores”, diz Cardoso.
Pelo lado da demanda empresarial por funcionários, ela pode ser considerada alta quando tanto a ocupação quanto os rendimentos crescem acima da média histórica, diz Cardoso. Se ambos crescem aquém disso, é um indicador de baixa demanda.
A equipe do Daycoval também observou que a alta demanda empresarial por trabalhadores tem ganhado participação na explicação do crescimento dos rendimentos no primeiro quadrimestre do ano. “A alta demanda denota dinamismo do mercado de trabalho, mas que não se chegou ainda a uma limitação desse processo. O mercado de trabalho estaria muito forte, mas ainda existiria para onde crescer”, afirma Cardoso.
A alta demanda por funcionários em um setor pode, eventualmente, se transformar em um quadro de escassez de oferta de mão de obra, observa Cardoso. O trabalho do Fed San Francisco pondera, segundo o economista, que um diagnóstico mais preciso dos cenários dependeria de as categorias analisadas permanecerem na mesma classificação por 11 meses.
“Nossa conclusão é que há uma tendência de mais segmentos da economia brasileira estarem em um quadro que indica alta demanda por trabalho ou escassez de oferta de mão de obra. Não há uma escassez generalizada ainda, mas isso pode vir a acontecer”, afirma Cardoso.
A contrapartida de um cenário mais generalizado de escassez de mão de obra, diz, seria juros mais altos. Simulações do Daycoval apontam que rendimentos reais crescendo acima da produtividade se materializam, sim, na inflação, principalmente na de serviços intensivos em trabalho. “Se isso é verdade, ainda que não haja uma transmissão generalizada para a inflação, gera um comportamento mais conservador do Banco Central”, afirma Cardoso.
Levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) para o mercado formal mostra que, das cem principais ocupações no comércio e no turismo, 27% e 36%, respectivamente, apresentavam indícios de escassez de mão de obra em maio. Foram consideradas como profissões com indícios de escassez de mão de obra aquelas em que, apesar da ampliação de vagas, o salário de admissão avançou de forma mais intensa do que a média do setor.
No comércio, o salário médio de admissão nominal variou 6,9% ante maio de 2023, de acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do governo federal. Para a profissão de analista de pesquisa de mercado, no entanto, a alta foi de 26,2%. Fabio Bentes, economista sênior da CNC, destaca também o avanço dos salários para promotor de vendas especializado, embalador, alimentador de linha de produção e em profissões relacionadas a entrega e logística.
“Chama a atenção o fato de profissões mais tradicionais do comércio não estarem com indícios de escassez de mão de obra. O comércio está se transformando e tem procurado alguns profissionais mais qualificados”, afirma Bentes (leia mais abaixo).
Apesar disso, ele diz que, se há uma escassez de mão de obra mais preocupante, ela se apresenta mais no turismo do que no comércio. No turismo, observa Bentes, os indícios de escassez de mão de obra estão presentes em profissões mais “tradicionais”, relacionadas a hotelaria, transporte, alimentação e serviços em geral, por exemplo.
“A reação do turismo para retornar a níveis anteriores à pandemia demorou mais do que no comércio, mas, quando veio, foi muito forte. Os indícios de escassez no setor aparecem de forma mais frequente, disseminada e em profissões básicas, reforçando que a demanda está muito aquecida”, diz.
Há indícios de escassez de mão de obra ainda nas sondagens empresariais realizadas pela Fundação Getulio Vargas (FGV).
Na pesquisa de junho, 19,3% dos entrevistados do setor de serviços mencionaram a escassez de mão de obra qualificada como um dos fatores que limitavam a melhora dos negócios, o maior valor para o mês desde 2015 (23,5%) e atrás apenas da competição (38,5%) e da demanda insuficiente (25,9%).
“É um setor que demorou para sair dos efeitos da pandemia e que volta a ter uma atividade mais aquecida”, afirma Rodolpho Tobler, coordenador das Sondagens Empresariais da FGV.
O problema é ainda mais claro na construção. No setor, as menções a escassez de mão de obra qualificada como limitante aos negócios passaram de 25,4% na sondagem de maio para 28,7% em junho, assumindo o primeiro lugar entre os entraves citados. É também o maior valor para junho desde 2014 (31,6%).
O mercado de trabalho aquecido se desdobra não só na dificuldade de encontrar mão de obra em alguns setores, mas também no custo para conseguir contratar esses funcionários, aponta ele.
No comércio, 11,6% dos entrevistados mencionaram o custo da mão de obra como fator limitante aos negócios em junho. Ainda que o valor seja um pouco inferior às menções em maio (15,1%), é o maior para junho desde 2019 (13,6%) e a tendência dos últimos meses é de alta, segundo Tobler.
“Essa série costuma ser mais volátil. Precisamos avaliar também se não houve uma questão pontual ligada, por exemplo, à tragédia no Rio Grande do Sul. Essas empresas podem estar com problemas maiores agora e terem parado de mencionar [o custo da mão de obra]. Nas próximas sondagens, com a normalização, isso pode voltar. O custo de mão de obra tem incomodado o comércio”, diz Tobler.
Isso também tem pressionado o dia a dia das empresas na construção, setor em que 19,2% dos entrevistados mencionaram o custo da mão de obra como limitante para seu crescimento em junho.
No geral, a escassez de trabalhadores qualificados e o aumento do custo da mão de obra podem impactar, à frente, tanto a produtividade da economia quanto os preços cobrados dos consumidores, observa o economista da FGV.
“Não quero dizer que terá um efeito amanhã, mas a continuidade dessas dificuldades podem ser problemas estruturais, mostrando que, apesar dos ganhos de escolaridade ao longo dos anos, poderíamos ter condições de produção mais favoráveis, mas alguns entraves atrapalham o crescimento dessas atividades”, afirma.
Fonte: Valor Econômico – Brasil, por Anaís Fernandes – São Paulo, 09/07/2024