Muito se fala na instabilidade jurídica existente no Brasil. Inúmeros são os exemplos de normas editadas com textos confusos, pouco esclarecedores e/ou repletos de lacunas. Situação semelhante ocorre com a existência de leis e decisões judiciais contraditórias tratando do mesmo assunto, promulgadas e emanadas, respectivamente, em curto espaço de tempo.

Há também a famosa história das leis “que não pegaram’” ou mesmo ‘caíram em desuso’. A situação da Eireli é só mais um desses exemplos. Explico.

A dúvida que fica é porque em nosso país insistimos em manter vigentes leis e dispositivos sem aplicação prática

Antes, para que uma única pessoa explorasse determinada atividade empresarial, deveria se organizar na figura de um empresário individual, com a desvantagem de que seu patrimônio pessoal se confundiria com o patrimônio do “empresário individual”.

Para se evitar tal confusão patrimonial, e dada a exigência legal de que toda sociedade limitada constituída no Brasil deveria ter dois ou mais sócios em seu quadro social, a prática adotada na grande maioria dos casos era simplesmente constituir uma sociedade limitada com um segundo sócio, alheio ao negócio. Isso significa que ele não teria qualquer atuação ou ingerência nas atividades desempenhadas por tal sociedade. Era prática corriqueira, assim, recorrer ao cônjuge ou mesmo outro familiar próximo para atender a pluralidade de sócios exigida pela legislação brasileira.

Até mesmo grandes multinacionais instaladas no país adotavam a prática quando organizadas na forma de sociedades empresárias limitadas. Para tanto, na maioria das vezes, utilizavam uma segunda sociedade, pertencente ao mesmo grupo econômico da sócia principal, com participação societária mínima, tão somente para atender a exigência da lei brasileira.

Por vários anos, reclamamos sobre a necessidade de a legislação brasileira admitir a figura da “sociedade unipessoal de responsabilidade limitada” ou assemelhada, figura presente há tempos em países como França, Espanha, Portugal, Itália, Bélgica, Alemanha, Reino Unido, Dinamarca e Chile.

Tal lacuna legislativa, no entanto, encerrou-se com a edição da Lei nº. 12.441/11, em vigor a partir de meados de janeiro de 2012, que instituiu a ‘empresa individual de responsabilidade limitada’, mais conhecida por Eireli. Na época, só não celebramos por completo a instituição da Eireli, por três razões.

A primeira referia-se ao fato da lei dispor que toda e qualquer Eireli deveria possuir capital social mínimo, devidamente integralizado, equivalente a cem vezes o maior salário-mínimo vigente no país. A justificativa era absurda e sem sentido. Não há exigência na lei brasileira de se observar um capital social mínimo para constituição de uma sociedade limitada ou mesmo uma sociedade por ações. E, ao estipular tal capital social mínimo, poderia ser delimitado, em proporção razoável, o porte da organização definida como Eireli, a fim de que não se desvirtuasse a iniciativa, nem se prestasse a dissimular ou ocultar vínculo ou relação diversa.

A segunda delas, igualmente prevista no texto da lei, previa que uma pessoa somente poderia ser titular de uma única Eireli. Ora, em nenhum momento se argumenta que a instituição da Eireli deveria atender tão somente aquelas pessoas que desenvolveriam uma única atividade empresarial. Por que, assim, não admitir a utilização da Eireli por uma mesma pessoa, titular de inúmeros negócios ou atividades? Por que não poderia ela, assim, ter uma Eireli para cada uma dessas atividades?

A terceira e última delas, decorrente de interpretação do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), órgão que regula a atividade de registro de empresas no território nacional, impossibilitava a constituição de Eireli por pessoa jurídica. Essa limitação deixou de existir a partir de uma nova regulamentação do DREI editada em 2017, que, acertadamente, passou a admitir essa constituição por pessoa jurídica, nacional ou mesmo estrangeira.

Pouco mais de sete anos depois, o governo federal, por meio da Medida Provisória da Liberdade Econômica (MP nº 881/2019), convertida na Lei da Liberdade Econômica em 20 de setembro (Lei nº 13.874/2019), alterou dispositivo do Código Civil (artigo 1.052, parágrafos 1º e 2º), eliminando a exigência da presença de dois ou mais sócios para constituição de uma sociedade limitada, criando, assim, a figura da sociedade limitada unipessoal.

É de se louvar a iniciativa do governo, ratificada pelo Congresso Nacional. Enfim é possível celebrar. Temos a oportunidade de eliminar a figura do sócio de fachada, vez que a lei brasileira admite, agora, que uma única pessoa constitua sozinha uma ou várias sociedades limitadas, sem qualquer exigência de capital social mínimo.

Ora, se Eireli e sociedade limitada unipessoal possuem rigorosamente a mesma finalidade, não possuindo esta última qualquer limitação à sua utilização, poderia se concluir que o governo, no próprio texto da Lei da Liberdade Econômica, revogou os dispositivos do Código Civil que tratavam da Eireli.

Por incrível que pareça a resposta é não!

O governo e o Congresso Nacional não só deixaram de extinguir a Eireli, como no mesmo texto legal incluíram dispositivo no Código Civil, reforçando o entendimento de que pelas dívidas de uma Eireli somente responderá o patrimônio da mesma.

Este é só mais um exemplo da falta de reflexão dos nossos legisladores no curso do processo legislativo.

Enfim, que a Eireli cairá em desuso não há nenhuma dúvida. A dúvida que fica é porque em nosso país insistimos em manter vigentes, leis e dispositivos sem qualquer aplicação prática.

Aloisio Carneiro da Cunha Menegazzo é sócio de TozziniFreire Advogados em Campinas nas áreas Societária e de Fusões e Aquisições

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Fonte: Valor - Legislação, por Aloisio Carneiro da Cunha Menegazzo, 12/12/2019