Um patriarca bilionário, residente no exterior, vem fazendo doações periódicas para os filhos, em São Paulo. Toda vez que recebem uma doação, eles entram com mandado de segurança preventivo e não pagam o imposto sobre transmissão (ITCMD) de 4% ao Estado. São 30 ações ao todo que, juntas, somam R$ 46 bilhões.

O caso, divulgado pela imprensa nos últimos dias, corre em segredo de justiça e o nome da família não pode ser revelado. E não é o único. O Valor apurou que, só no Estado de São Paulo, existem pelo menos 200 processos aguardando julgamento, em ações que envolvem cerca de R$ 60 bilhões - o que pode provocar um impacto, na arrecadação, de R$ 5,4 bilhões, incluindo eventuais devoluções a quem já pagou o imposto. Esse valor supera o total arrecadado por ano com o ITCMD. São cerca de R$ 3 bilhões entre doações e heranças, segundo a Procuradoria-Geral do Estado (PGE).

Essa questão poderá ter um desfecho a partir de sexta-feira, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) vai decidir se os Estados podem cobrar ITCMD de residentes que receberam doações ou heranças de bens que estão fora do país ou que foram enviados por pessoas domiciliadas no exterior.

O caso a ser julgado é de uma advogada que recebeu uma herança do pai, residente na Itália, e obteve autorização do TJ de São Paulo para não pagar ITCMD. Essa autorização está sendo contestada pela PGE paulista e, se o Supremo aceitar a contestação, a decisão terá “repercussão geral”, ou seja, valerá para todos os processos sobre o tema em tramitação no país.

Se o STF decidir pela cobrança, os desembargadores do TJ-SP terão de aplicar o entendimento às ações ajuizadas pela família paulista, que precisará desembolsar cerca de R$ 2 bilhões em impostos. Os ministros vão analisar a matéria por meio de um recurso (RE 851.108) apresentado pela própria PGE de São Paulo, que contesta a decisão que favoreceu a advogada.

São Paulo tem uma lei, a nº 10.705, de 2000, que prevê a cobrança do ITCMD sobre bens no exterior ou que foram enviados por pessoas que residem fora do país. Os contribuintes alegam, porém, que o Estado não tem essa competência e que a cobrança, para ter validade, deveria estar prevista em lei federal. O Estado sustenta que a Constituição Federal, em seu artigo 24, permite a cobrança. Existe previsão para uma lei complementar, mas ela nunca foi editada. Por esse motivo, para o Estado de São Paulo, não há impedimento para a cobrança. Os procuradores afirmam que, se no futuro a lei for editada e divergir da norma estadual, o governo, aí sim, teria de fazer uma revisão.

A PGE trata esse caso como sendo de justiça fiscal. “Tem se feito uma grande engenharia para que os mais riscos não paguem impostos. Eles fazem planejamentos fiscais abusivos e deixam de pagar, enquanto os demais, que não têm todo esse dinheiro, precisam pagar. Ou seja, rico não paga, mas pobre paga”, diz um procurador que atua no Grupo de Atuação Especial de Recuperação Fiscal.

Outros Estados têm leis semelhantes e, como a decisão do STF valerá para todo o país, também serão afetados. Entre eles, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Nesses três Estados, diferentemente de São Paulo, os Tribunais de Justiça têm entendimento favorável à cobrança.

O ministro Ricardo Lewandowski, do STF, já decidiu, de forma monocrática, um processo envolvendo a legislação do Rio (AI nº 805.043). A decisão, proferida em 2010, favoreceu o Estado.

O julgamento, desta vez, ocorrerá no Plenário virtual do STF. Nesta plataforma, os ministros têm até uma semana para proferir o voto. O desfecho - se não houver pedido de vista nem destaque que suspendam as discussões - deverá ocorrer em 30 de outubro.

Foi uma brecha no texto da Constituição de 1988, que previa a lei complementar para regulamentar a cobrança do ITCMD para quem tinha ativos no exterior, que deu margem para inúmeros processos que chegaram ao Judiciário brasileiro. Segundo Hermano Barbosa, sócio do BMA Advogados, é necessário mesmo ter uma regra adicional para se evitar a bitributação - no país em que o doador é residente e no Brasil - ou disputas fiscais entre entes da federação.

Como o Congresso nunca legislou sobre o tema, a controvérsia foi parar no STF. “Há acordos internacionais para se evitar a bitributação de impostos sobre herança e sucessões, mas o Brasil nunca assinou por conta do modelo federativo”, afirma Barbosa. “O sujeito herda um imóvel na França, país que tem a maior tributação sobre heranças do mundo, e também vai pagar o imposto no Brasil? Ou recebe em doação ativos nos Estados Unidos, ações, vai ser tributado lá e aqui?”, questiona o tributarista.

Na ausência de uma lei complementar, dos 27 Estados, 22 criaram regras de tributação sobre heranças recebidas no exterior. O contribuinte insatisfeito vai ao Judiciário questionar. Ele comenta que a Procuradoria Geral da República (PGR) já fez parecer favorável aos contribuintes.

Quando o doador é estrangeiro ou há sucessão em que o falecido tem bens no exterior, o texto constitucional é claro sobre a necessidade de lei complementar, diz Frederico Bastos, sócio do BVZ Advogados. Uma terceira hipótese que vem sendo discutida nos tribunais é quando o doador é brasileiro, mas tem ativos fora do país - como é o caso da família paulista.

“São Paulo tem jurisprudência favorável ao contribuinte. Muitas famílias com patrimônio relevante e recursos no exterior, antes de qualquer movimentação do capital, ajuizam algum recurso para evitar que o ITCMD seja cobrado por ora”, diz Bastos. Dessa forma, o Fisco não pode fazer a autuação até que o STF decida.

Embora a PGE fale de justiça fiscal com a cobrança do ITCMD, a questão precisa ser encarada tecnicamente e não de forma politizada, defende Barbosa, do BMA. Também professor do Insper, Bastos, do BVZ, diz que práticas de planejamento tributário são assunto recorrente no estudo do Direito, e um expediente comum entre famílias de alto patrimônio. Não se trata aqui de se fazer simulação ou evasão fiscal, mas buscar licitamente formas de se economizar impostos.

Alessandro Fonseca, sócio de gestão patrimonial do Mattos Filho, diz que há parâmetros usados pela Receita para identificar se quem faz a declaração de saída definitiva do país de fato fez o movimento. Se alguém com alto patrimônio muda sua residência fiscal e a primeira coisa que faz é a doação no exterior e, na sequência, parte dos recursos volta para o Brasil, esse é um fluxo que vai ser analisado. “Transferir patrimônio sem imposto em sucessão é evasão fiscal, não tem consistência econômica.”

Segundo o especialista, é preciso haver a efetiva transferência do centro de interesse, romper os vínculos presenciais com o país, o que vale para qualquer obrigação tributária. No caso de empresário residente no exterior, mas com operações dentro e fora do Brasil, ele tem o precedente de eleger uma jurisdição onde vá cumprir os requisitos legais.

Numa sucessão ou doação de bens no exterior não necessariamente os recursos precisam ser internalizados, explica Rubens de Souza, coordenador de contencioso tributário no WFaria.


Fonte: Valor Econômico - Finanças, por Joice Bacelo e Adriana Cotias - de Brasília e São Paulo, 21/10/2020