Está praticamente certo que as incorporadoras imobiliárias brasileiras passarão a ter registrar a receita da venda de imóveis na planta para clientes de classe média e classe média alta apenas na entrega das chaves, e não mais ao longo da obra, em um método conhecido como POC (do inglês "percentagem of completion"), como é a prática história adotada no país. 

A intervenção da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) não foi suficiente para convencer os membros do comitê de comitê de interpretações das normas contábeis IFRS, conhecido como Ifric, de que o sistema mais adequado para refletir a realidade econômica dos negócios no Brasil é o POC.

A manifestação do Ifric, que decorreu de consulta formal apresentada pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), diante da entrada em vigor, em 2018, da nova norma contábil sobre reconhecimento de receita, se deu em reunião ontem em Londres.

Os membros do Ifric concordaram, por grande maioria, com o entendimento da área técnica do órgão, que havia concluído, com base no relato do CPC sobre os contratos de venda de imóveis no Brasil - e também sobre como a Justiça os interpreta -, que o reconhecimento da receita deve ser feito apenas na entrega das chaves.

O impacto de uma mudança como essa, que tem como efeito prático adiar o registro da receita (mas não afeta os contratos para o segmento de baixa renda), seria muito maior se o mercado imobiliário estivesse em alta. Mas o efeito nos resultados e no patrimônio líquido não deve ser desprezível - o que pode afetar índices de endividamento -, ainda que não haja nenhuma mudança nos fluxos de caixa das empresas.

Segundo um analista da área, no curto prazo pode até haver alta das receitas nos primeiros trimestres de 2018, porque muitas entregas de unidades estão ocorrendo. Mas a mudança adiaria o reflexo, nos balanços, da retomada que se espera desse mercado.

Procurada pela reportagem, a CVM afirmou em nota que "respeita a decisão do comitê de interpretação das normas contábeis internacionais IFRS (Ifric)", mas disse que "reitera a manifestação" enviada ao órgão na véspera. Nesse documento, a superintendência de normas contábeis e auditoria da CVM disse que a eventual mudança no método de reconhecimento de receita vai resultar na "preparação de demonstrações financeiras que não serão úteis nem para os administradores das empresas nem para os usuários, dado que elas não representarão adequadamente os eventos econômicos que elas deveriam refletir".

Embora baseada na realidade do mercado brasileiro, descrita pelo CPC, a análise do Ifric foi feita no plano teórico - indicando como os agentes devem interpretar o pronunciamento contábil nessas situações. Em nenhum momento o nome "Brasil" foi citado na reunião, por exemplo.

Os próximos passos para o desfecho do caso dependem da redação que será dada pelo Ifric na resposta ao questionamento. O órgão deve procurar fazer um texto genérico, porque seus membros querem evitar uma enxurrada de consultas semelhantes sempre que houver uma dúvida em um país sobre a aplicação de norma.

Uma vez dada a resposta, será a vez de o CPC e a CVM se pronunciarem. Em último caso, se houver resistência, os dois órgãos têm a opção legal de criar uma exceção para o IFRS adotado no Brasil, embora até hoje a conduta tenha sido de adoção do completa do padrão internacional.

Para a autarquia, os contratos no Brasil atendem a condição descrita no item da norma que permite o registro da receita ao longo do tempo, quando "o desempenho por parte da entidade cria ou melhora o ativo (por exemplo, produtos em elaboração) que o cliente controla à medida que o ativo é criado ou melhorado". O fato de o comprador de um imóvel na planta poder vender o bem durante a construção, e inclusive se beneficiar da valorização, se for o caso, seria uma evidência de controle.

Na visão dos técnicos do Ifric, o comprador só controla de fato o contrato de compra, de forma semelhante ao que ocorre num instrumento financeiro, e não a unidade residencial em construção.


Fonte: Valor - Empresas, por Fernando Torres, 13/09/2017