Como cidadão proponho-me, dentro de minhas limitações, a olhar a discussão do caso do ICMS na base de cálculo de incidência do PIS/Cofins. Mas não do ponto de vista técnico neste momento. E sim tentativa e exclusivamente sob o ponto de vista de política pública, ou seja, do que entendo com um olhar pressupostamente de justiça social.

O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou, há quatro anos, a inconstitucionalidade da incidência do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins e cessou a aplicação dessa forma de cálculo dali para a frente. Perfeito, assunto resolvido. E, ao assim definir a questão, evidenciou a validade da exclusão do “ICMS destacado” na nota fiscal, o que parece indiscutível, mas é válido apenas daquele momento em diante.

Não teriam sido as empresas meros veículos dessa transferência que agora está sendo considerada indevida?

Não definiu o Supremo sobre o passado, sobre o que teria sido recolhido a mais ao longo do tempo antes da vigência dessa decisão. E agora estamos na véspera dessa decisão complementar e temos, obviamente, um embate entre empresas e União sobre como calcular esse efeito passado, e até mesmo sobre se deve esse passado ser revisitado ou não.

E daí meus pensamentos: além dos aspectos jurídicos e técnicos de outra natureza, cabe alguma discussão do ponto de vista macro, do ponto de vista dos reflexos econômicos em geral para o país, do ponto de vista de justiça social dessa decisão que deve vir nestes próximos dias?

E se olhássemos essa discussão sobre se deve ocorrer a devolução, e, em caso positivo, como ela deve ocorrer, mas dentro de uma visão de política pública tentando olhar a justiça social? Procuro enxergar e consigo refletir pelo menos sob três ângulos diferentes.

A primeira reflexão: quem de fato pagou por esse tributo a maior ao longo de todo esse tempo decorrido? Terá sido a primeira e uma corrente de empresas que leva à produção e, ao fim, ao consumo de um bem ou serviço? Ou terá sido somente a última empresa dessa corrente? Ou todas elas, com cada uma tendo recolhido um montante cujo total agora se possa decidir como indevidamente levado aos cofres da União? E o que primeiro me vem à mente é: será que quem pagou a mais, de fato, não terá sido o consumidor? Afinal, o tributo não compôs o preço final e quem desembolsou esse preço final não foi o consumidor?

Não teriam sido as empresas da corrente apenas veículos dessa transferência que agora está sendo considerada indevida do consumidor para o Tesouro? Mas, se for esse o pensamento correto, não deveria então todo o tributo recolhido a mais ser devolvido pelo Tesouro ao consumidor que de fato o suportou?

Só que, por mais justo que possa isso ser, é totalmente inviável do ponto de vista prático; impossível identificar o quanto devolver a cada um. Assim, resta então uma primeira reflexão: o mal está feito, não há como corrigi-lo de maneira socialmente justa; e, se esse for o entendimento, será que a saída seria: deixemos como está? Ou seja, muda-se a forma de cálculo do PIS/Cofins da vigência da decisão do Supremo em diante, sem se procurar em retificar o passado.

Mas é lógico que podemos esperar que a teoria econômica seja levantada por muitos no sentido de que esse raciocínio não é totalmente correto. Afinal, economistas viriam provavelmente a contestar dizendo que não é verdade que somente o consumidor teria arcado com o custo. Afinal, se nesse passado o preço final do bem ou serviço ficou maior por causa da cascata de incidências indevidas, a demanda total por esses serviços e bens terá diminuído e, dessa forma, as empresas também terão arcado com um pedaço do custo ao perder receitas.

Claro que há uma lógica forte nessa linha, mas percebemos que fica mais impossível ainda o cálculo de quanto devolver a cada um dos consumidores e empresas prejudicados no passado. Seria praticamente impossível conseguir-se a aplicação dessa linha de pensamento como política pública.

A não ser no caso da Aneel, a aplaudir de pé, que deliberou descontar na tarifa dos consumidores o que as empresas de energia receberem.

Segunda reflexão: por que então não distribuir o pago a maior durante o passado a cada elo de cadeia inteira, ou seja, a cada uma das empresas que efetuou o recolhimento dado como a maior? Afinal, cada uma recolheu um pedaço do tributo excedente ao longo dessa cadeia. Claro que fica a questão: mas se quem pagou no final foi o consumidor, por que transferir às empresas na proporção do que cada uma recolheu?

Mas poderia a justiça social ser assim pensada: já que não dá para devolver ao consumidor, pelo menos que desse recurso excedente não se aproveite o governo que cometeu a ilegalidade; afinal, voltando às empresas, voltam-se os recursos aos geradores de riqueza, o que é bom para a sociedade. E agora um pouco de tecnicalidade: o pedido da União de, se for devolver, que seja com base no ICMS recolhido por cada sociedade é nessa direção.

Não é uma forma tecnicamente perfeita porque não só o problema dessa incidência sobre o ICMS define o valor recolhido excedente. Mas não deixa de ser uma fórmula que se aproxima do que poderia ser considerado justo se aceito o fundamento desta segunda reflexão (devolver às empresas). Basta lembrar que, na essência, o tributo a maior terá sido recolhido por cada empresa da cadeia até o consumidor final. Assim, a base de cálculo com fundamento no que cada uma recolheu a mais parece fazer sentido se aceita essa política.

Mas há uma terceira reflexão: por que não se devolver o tributo todo pago a maior ao último elo da corrente? E isso é o que ocorreria caso a devolução fosse com base no ICMS destacado na nota fiscal pela última entidade da corrente. Afinal, o ICMS destacado na última nota representa o total incorrido ao longo da corrente, e não o incorrido por essa última empresa da corrente. Daí a dúvida: há sentido de justiça social numa política como essa? O valor total devolvido só à última?

Mas isso não deverá ocorrer, porque haverá, sim, outras empresas da corrente a pedir sua devolução, e daí teremos o seguinte fenômeno: se cada uma receber em devolução com base no ICMS destacado na sua nota fiscal, o total do tributo devolvido será maior do que o total do tributo efetivamente recolhido a maior. Justiça social?

O consumidor, nesse caso, teria que, além de haver suportado o tributo a maior no passado ao consumir bens e serviços, transferir agora recurso novo ao Tesouro para este cobrir esse excedente. Mas já ouvi: “ Nem todas as empresas tomaram providências jurídicas para receber o recolhido a mais, então a soma da devolução poderá ser inferior à do tributo total pago a maior”. Então teríamos: quem tomou providências jurídicas receberá mais do que o que de fato recolheu a maior, e quem não tomou não receberá nada? Política pública indicativa de justiça social?

Difícil, não? Ou estou enganado?

Eliseu Martins é professor da FEA-USP de São Paulo e Ribeirão Preto.


Fonte: Valor Econômico - Opinião, por Eliseu Martins, 12/05/2021