Aos 15 anos, Heloisa Cruz viu a sua família “quebrar”, às voltas com dívidas que se arrastavam desde o confisco do Plano Collor, em 1990. Hoje, aos 37, ela divide a sua rotina de mãe de três filhos com a gestão da própria carteira de ações num clube de investimentos e em cursos de análise fundamentalista. A engenheira química alcançou a meta milionária de independência financeira que planilhava quando mais jovem e passou a liderar as finanças do casal.

Já a economista Marilia Fontes aguentou “as porradas” e o clima hostil do mercado financeiro por quase uma década até virar sócia de uma empresa de análise de investimentos independente. Atualmente, divide com o marido, um gestor de recursos, as decisões do orçamento doméstico e de investimentos.

Heloisa e Marilia são exemplos de um perfil que coloca o Brasil em destaque em liderança financeira feminina conforme um mapeamento mundial de investidoras do UBS Investor Watch. No estudo “Own Your Worth - Why women should take control of their wealth”, o grupo suíço entrevistou 3,7 mil mulheres casadas, divorciadas e viúvas com pelo menos US$ 250 mil investidos, em nove economias. No Brasil foram ouvidas 221 mulheres entre setembro de 2017 e janeiro de 2019.

Dentre os países analisados — Brasil, Alemanha, Hong Kong, Itália, México, Singapura, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos —, as brasileiras aparecem ao lado das mexicanas como aquelas com as maiores taxas de liderança ou na divisão com seus parceiros das decisões financeiras familiares.

 

O Brasil tem uma porcentagem de 33% de mulheres à frente do planejamento financeiro familiar, ante 30% do México, enquanto na partilha de tarefas associadas à economia doméstica as mexicanas representam 32% da amostra no país e o Brasil fica com uma fatia de 22%. Nas economias desenvolvidas pesquisadas, a liderança feminina não passa dos 22% e a divisão das responsabilidades limita-se a 25% nos Estados Unidos, caindo a 20% na Alemanha, a 15% no Reino Unido ou a 9% na Suíça.

A fotografia geral é que três quartos das mulheres ouvidas colocam o planejamento para a aposentadoria no topo das preocupações. Sete entre dez dizem que cuidados de longo prazo e a contratação de seguros são igualmente importantes. Todavia, apenas 23% delas estão envolvidas na tomada de decisões financeiras de longo prazo e só 19% dividem essa tarefa com seus maridos. A ampla maioria (58%) se submete ao direcionamento dos parceiros.

 

 

“Surpreendeu-me o fato de [as brasileiras] estarem entre as que menos delegam aos maridos a gestão do patrimônio (45%), principalmente porque vai contra a percepção da cultura latina como mais machista”, diz Sylvia Coutinho, presidente do UBS Brasil e principal executiva de gestão de fortunas do grupo na América Latina. “Mas acredito que no Brasil temos uma tradição de mulheres que tomam a dianteira na gestão das famílias que talvez se reflita neste número.”

A executiva, que, longe de casa desde os tempos da faculdade de engenharia na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), na década de 80, já se sustentava dando aulas de francês e inglês, sempre teve a independência financeira como um objetivo. “Mas para ser muito sincera, com a rotina enlouquecida de viagens que eu levo, acabo delegando ao meu marido o dia a dia das finanças da família. Mas algumas vezes por ano sentamos juntos e pensamos nos melhores investimentos para o longo prazo.”

Na pesquisa, o UBS identificou que 93% das mulheres que delegam a liderança financeira para os seus maridos no Brasil têm esse comportamento por acreditar que eles entendem mais desse assunto do que elas. Para Sylvia, a inclusão da disciplina “finanças pessoais” no currículo das escolas de ensino médio despertaria o tema nas novas gerações. Ela lembra que, embora o Brasil se sobressaia, uma fatia de 45% das mulheres ainda se submetem financeiramente aos seus cônjuges. “Seria importante que esse número fosse ainda menor e que esse assunto fosse sempre compartilhado entre o casal.”

Foi fazendo pequenas e grandes economias desde sempre, comprando, por exemplo, “katchup genérico e cor-de-rosa” em vez da marca top que Heloisa Cruz conseguiu direcionar o orçamento da família para menos gastos e mais investimentos, primeiro com o foco em títulos públicos atrelados à inflação longos.

Com o primeiro bônus que ganhou comprou um carro, com o segundo, aos 24, se casou e a partir dali a combinação do casal era gastar o salário menor e guardar o maior. Ela já estudava o mercado de ações desde suas primeiras experiências numa consultoria estratégica, mas foi quando se tornou analista no Banco Fator que passou a investir como pessoa física. Antes da carreira solo atual, ainda passou pela asset do J.P. Morgan, pela BRL Capital, pela equipe de pesquisa do Itaú, da Guepardo Investimentos e pela Nest. E foi justamente a maternidade que a levou a se dedicar mais à gestão de recursos proprietária.

 

 

“Sou um pouco antiquada, talvez pareça machista, mas estar em casa com as crianças muda tudo. Só que dentro da divisão de tarefas da família faz mais sentido que as mulheres cuidem dos investimentos”, afirma Heloisa. “Eles, em geral, trabalham mais horas por dia, ganham mais. O investimento deveria ser, cada vez mais, da mulher. Essa fase de ficar em casa é muito chata se não tiver outra coisa para fazer e ficar só no cocô e na papinha o dia todo.”

Marilia Fontes diz que um quarto dos assinantes dos relatórios da Nord, empresa de análise independente que fundou com outros sócios no ano passado, são mulheres. Ela também acredita que o público feminino deveria liderar as finanças familiares porque elas são mais tranquilas e disciplinadas para cuidar de investimentos.

“Os homens, muitas vezes, acham que sabem tudo, investem em coisas não tão boas, zeram rápido demais quando têm lucro e deixam o prejuízo rolar porque não querem perder, há todo um viés psicológico”, diz. “A mulher segue mais o plano.”

Com um histórico de gestora de estratégias de juros e câmbio em assets como Kondor e Mauá e um estágio na mesa de derivativos do Itaú, ela fala com propriedade do perfil comportamental e dos percalços que passou num ambiente notadamente masculino. “Quando você está perdendo dinheiro num fundo enorme é muito estresse. Vai ter alguém gritando para ‘stopar’ [zerar para limitar as perdas] a posição, xingando, e você não pode levar para o lado pessoal. E não era porque eu era mulher, era o jeito que treinavam todo mundo”, diz. “Além do dia 1 e a inevitável pergunta: será que ela aguenta?, nunca sofri preconceito. Só que eu aprendi a gritar mais alto.”


Fonte: Valor, por Adriana Cotias, 06/03/2019