O déficit habitacional da região metropolitana de São Paulo bateu recorde e superou, pela primeira vez, a marca de 1 milhão de moradias, mostram cálculos inéditos realizados pela Fundação Getulio Vargas (FGV), obtidos pelo Valor.

O estudo mostra que o déficit da região metropolitana chegou a 1,024 milhão de unidades em 2018, o que representa um aumento de 110,8 mil unidades em relação ao ano anterior. Desde 2011, esse déficit dobrou de tamanho, ao crescer a um ritmo médio de 10% ao ano.

Na região metropolitana do Rio de Janeiro o déficit também dobrou de tamanho desde 2011, atingindo 543.121 moradias em 2018. No caso do Rio, porém, o indicador mostrou leve queda em relação ao ano anterior, quando a carência habitacional era maior em 2.800 unidades.

O tamanho do problema habitacional chama atenção num momento em que o governo Jair Bolsonaro estuda reformular as regras do programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), principal instrumento para combater a falta de moradia para as faixas mais pobres da população.

As estimativas foram traçadas pelos economistas Robson Gonçalves e Ana Maria Castelo, da FGV, com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). São as primeiras estimativas referentes ao ano de 2018.

O estudo considera o déficit em quatro dimensões: domicílios precários (como barracas e materiais inadequados); coabitação (famílias que dividem um mesmo domicílio); ônus excessivo com aluguel (aluguel superior a 30% da renda domiciliar); e adensamento excessivo (mais de três pessoas por quarto).

 

 

A carência em São Paulo dobrou desde 2012 puxada pelo aluguel excessivo. Em 2018, esse componente respondia por 46,3% da necessidade de moradias, ou 474.444 unidades. De 2012 a 2018, o aluguel em São Paulo ficou 63% mais caro no IPCA. No período, a renda do trabalho cresceu menos, 17%.

A coabitação também avançou em São Paulo e respondia por 63% do déficit, ou 441.907 unidades. É mais um reflexo da crise. Gonçalves explica que o número de famílias seguiu crescendo nos últimos anos na região metropolitana, mas os programas habitacionais foram reduzidos por questões fiscais.

“As pessoas formaram novas famílias e não conseguiram um domicílio. É o sujeito que casou e continua morando com os país”, diz ele, acrescentando que o menor aumento da população ainda não afeta o indicador. “A taxa de formação da famílias reflete o crescimento populacional com 20 anos de defasagem.”

Essa carência por habitações na Grande São Paulo chamou atenção em 2018 com o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no centro da cidade, em maio. O prédio de 24 andares, ocupado por cerca de 400 pessoas, pegou fogo e desabou. O local era uma ocupação irregular.

Para Ana Maria Castelo, coordenadora de projetos no Ibre/FGV, é pouco provável que o déficit das demais regiões metropolitanas do país tenham tido comportamento muito diferente de São Paulo e do Rio de Janeiro nos últimos anos.

“É pouco provável porque teria exigido políticas habitacionais bastante diferentes do que vimos nas duas cidades, e não temos conhecimento disso. Mas é uma hipótese” diz a economista, uma das principais especialistas no tema habitacional.

Para ela, a melhora mais efetiva do mercado de trabalho brasileiro pode contribuir para reduzir o déficit habitacional das grandes cidades, na medida em que o avanço da renda desenquadre famílias do chamado no ônus excessivo de aluguel.

“Se isso acontecer, alguma famílias que estão no limite do déficit habitacional podem sair dele, até porque existe uma redução da taxa de juros do financiamento imobiliário, o que permitiria que parte das famílias fosse atendida pelo próprio mercado”, avalia ela.

Como é sabido, o déficit habitacional está concentrado na camada mais pobre da população. Do déficit total, 67% referem-se a famílias com renda domiciliar de até três salários mínimos, o correspondente a até R$ 2.862, com base no valor do salário mínimo vigente em 2018. O número é semelhante no Rio (72%).

Luciana Royer, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), diz que essa parcela mais pobre dos brasileiros é a que mais precisa de programas habitacionais e de subsídios do governo para ter acesso à habitação de qualidade.

“São pessoas que não têm capacidade de pagamento de financiamento como a classe média, ou seja, de comprar móvel em 30 anos e cobrar o valor”, disse a pesquisadora. “Esse foi um dos grandes diferenciais do Minha Casa, Minha Vida, dar acesso habitacional com aportes significativos de subsídios.”

Lançado em 2009, o Minha Casa, Minha Vida do governo federal completou uma década de existência cercado por incertezas e falta de orçamento. O recém-empossado ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, terá o desafio de remodelar o programa habitacional e possivelmente rebatizá-lo.

Em 2019, o governo deixou de arcar temporariamente com sua parcela de subsídio destinado a empreendimentos das faixas 1,5 e 2 do programa, alegando limitações fiscais. O benefício passou a ser integralmente apoiado pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

Neste ano, o FGTS reservou R$ 9 bilhões para o programa. O Orçamento federal deveria prever R$ 900 milhões, referentes aos 10% de subsídio que cabe ao governo. O Orçamento da União, porém, direcionou apenas R$ 295 milhões de contrapartida para o programa.

Segundo Gonçalves, na ausência de mais recursos federais para construção de habitações populares, uma saída seria o aluguel social conjugado a um programa de investimentos privados em novos imóveis. Ele afirma que é preciso quebrar o paradigma do “sonho da casa própria” para endereçar o problema.

“Outros países têm fundos de investimento que constroem moradias e alugam. Se o fiscal não comporta o subsídio à construção, pode funcionar para subsidiar o aluguel. O acesso à moradia para a baixa renda não exige que a família seja proprietária do imóvel”, afirma ele.

O secretário de Estado da Habitação de São Paulo, Flavio Amary, diz que uma iniciativa para enfrentar o problema é o programa Nossa Casa, do governo estadual, que prevê investir mais de R$ 1 bilhão para ofertar 60 mil novas moradias para famílias de baixa renda. O programa mira parceria com prefeituras.

“O programa oferece habitações a preços sociais, além de dar subsídios que podem chegar a R$ 40 mil para famílias com renda de até três salários mínimos”, explicou secretário, acrescentando que 18.628 unidades de habitação popular estão em obras no Estado de São Paulo.


Fonte: Valor-Brasil, por Bruno Villas Bôas -Rio, 19/02/2020